Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para
mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez
porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie – nem
sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim
cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página
de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em
todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível
que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de
engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo
de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em
que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo
sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam
festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo
mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas
se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas.
Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos
sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada
que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar.
Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela
primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão.
«Fabricou Salomão um palácio…» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso:
depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar,
como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da
nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras
inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que
os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande
emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é – não
– a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção
daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande
certeza sinfónica.
Fernando Pessoa –
Bernardo Soares - Livro do Desassossego
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